Por Leonardo Capeleto de Andrade, pós-doutorando no Instituto de Geociências (IGc) da USP, e Ricardo Hirata, professor do IGc-USP
Leonardo Capeleto de Andrade – Foto: Arquivo pessoal (Jornal da USP)
Ricardo Hirata – Foto: Arquivo pessoal (Jornal da USP)
De norte a sul do Brasil, os corpos hídricos superficiais ganham diferentes nomes. Não em relação aos seus nomes próprios, mas em suas denominações. Grandes rios em geral são apenas rios. Mas os menores ganham diferentes e curiosos apelidos ao longo do país: No Sul podem ser “arroios” ou “sangas”; no Sudeste “ribeiras”, “córregos”; e no Norte “igarapés”. Independente da toponímia, para a legislação ambiental são apenas “rios”.
Em Porto Alegre (RS), a população vive uma histórica guerra toponímica com o Guaíba que a abastece: alguns querem sua classificação como rio, outros como lago – até como estuário já houve. Os argumentos variam entre científicos, defesa ambiental ou mesmo por puro conservadorismo e tradição. Neste caso, porém, a legislação ambiental e proteção de suas margens realmente poderia ser alterada – apesar de já consolidada.
A população se conecta com as águas superficiais, mesmo com os córregos canalizados e retificados que fluem de forma apertada e controlada pelas capitais. Seja o arroio Dilúvio em Porto Alegre, o ribeirão Arrudas em Belo Horizonte ou o rio Aricanduva em São Paulo: os rios urbanos são referências e desenvolvem diferentes serviços ecossistêmicos nas cidades.
Ao longo da história alguns rios acabam sendo desviados ou mesmo revestidos e cobertos por avenidas e ruas. Se tornam apenas memória nas cidades, se tornam invisíveis para a população – e por vezes lembrados apenas durante os alagamentos por sua importância de macrodrenagem. O caso do riacho Cheonggyecheon, em Seul (Coreia do Sul), é um exemplo que tenta ser seguido em diferentes capitais brasileiras. Modificações foram feitas e o rio foi “desenterrado” e despoluído para ser devolvido à sua população. O invisível se tornou um cartão postal.
Os “rios voadores” que fluem da Amazônia para o sul do Brasil também são invisíveis, apesar de sua importância nos ciclos hídricos que sustentam as cidades que enterram seus rios superficiais. Mas nenhuma água é tão invisível aos olhos de quem se beneficia quanto as águas subterrâneas.
“Fazer o invisível visível” é o tema da Unesco de 2022 para as águas subterrâneas. Mas as águas subterrâneas geralmente só se tornam visíveis ao escorrer pelas torneiras de quem as utiliza. É o caso de 52% das cidades brasileiras que são abastecidas total (36%) ou parcialmente (16%) com água subterrânea distribuídas pela rede pública, totalizando mais de 30 milhões de brasileiros (18% da população).
Mas é no abastecimento privado que as águas subterrâneas fazem a diferença no país. Os mais de 2,5 milhões de poços tubulares (vulgo artesianos) produzem água suficiente para abastecer toda a sua população e é usada no abastecimento complementar de casas, condomínios, nas prestadoras de serviços, indústrias e na agricultura. Se não fossem por essas águas, muitas cidades colapsariam em épocas de seca. A inviabilidade ocorre também porque 70% dos poços são clandestinos – o que torna a gestão desse recurso muito limitada.
Apesar de parecer uma fonte inesgotável e geralmente mais “limpa” que as superficiais, os lençóis freáticos e os aquíferos estão sob risco, assim como os rios urbanos. Para alguns, as águas subterrâneas seriam um recurso estratégico, para o futuro – como as “louças da vovó”, guardadas para situações especiais. Porém, as águas subterrâneas já fazem parte do abastecimento de muitas cidades e não as usar é uma perda de oportunidade. As águas subterrâneas são um recurso que poderá resolver os problemas de hoje e de amanhã. E para isso, deve haver planejamento.
Os aquíferos devem ser vistos como um banco de águas, uma “poupança” – que pode render se as extrações forem menores que as reposições a longo prazo. Mas a recarga de grandes aquíferos, como o caso do Guarani, é muito lenta. E assim, este banco está tendo prejuízos, caindo seus níveis ano a ano em algumas cidades paulistas. E caso não consigamos reduzir as saídas, precisaremos complementar as entradas, fazendo recargas artificiais.
Enquanto dezenas de rios, arroios, córregos e igarapés são facilmente lembrados pela população, a maior parte destas pessoas talvez sequer saibam nomear três aquíferos ou percebam que podem estar entrando em contato com estes ao beber uma água mineral. É preciso dar visibilidade às águas subterrâneas. É preciso pensar no futuro, olhando para o presente.
Fonte: Jornal da USP