Novo marco regulatório brasileiro de saneamento favorece competitividade e eficiência em projetos
Cobrir a lacuna de água potável e saneamento é estimado em 500 bilhões de reais
A Associação Latino-Americana de Dessalinização e Reúso de Água, ALADYR, contextualizou em forma de palestra pública o novo marco regulatório e de proteção à saúde pública no Brasil em torno das possibilidades oferecidas pela dessalinização e reúso de água e efluentes como alternativas eficientes para atender às necessidades do país. A dinâmica foi realizada em um fórum online com a presença de reconhecidos profissionais da área de gestão hídrica.
O evento online teve muita interação entre palestrantes e espectadores; a abertura foi feita pelo Marcelo Bueno, diretor da ALADYR para o Brasil e a condução e moderação ficou a cargo do Eduardo Pedroza, representante da Associação e gerente de desenvolvimento de mercado da Cetrel. Durou quase duas horas entre apresentações e inúmeras rodadas de perguntas que se aprofundaram em três temas principais: marco regulatório e incentivo do reúso e dessalinização, reúso e dessalinização na indústria e a importância da metodologia de avaliação de risco na regulamentação do uso e reúso de água, efluentes e lodos.
Contou com a participação de líderes do setor de tratamento de água e efluentes como Giuliano Vito Dragone, Diretor GS Inima e Ex-Presidente do Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Saneamento que enfocou sua apresentação na situação atual do Brasil nos tópicos mencionados e as principais alterações no novo marco legal do saneamento sancionado no mês passado.
O painel também foi formado por João Bosco Reis da Silva, gerente geral de sustentabilidade e relações institucionais da ArcelorMittal Tubarão, que falou sobre a construção de uma planta dessalinizadora de água do mar no estado do Espírito Santo, que deve entrar em operação no próximo ano e é a maior do país.
Quem completou o trio de palestrantes foi o professor da Universidade Federal de Viçosa, Rafael Kopschitz Bastos, que também atua como consultor do Governo Federal em demandas regulatórias para reúso de água na agricultura e água potável.
Pedroza iniciou o debate destacando “alguns pontos importantes”. “Sabemos que o Brasil tem grandes desafios de infraestrutura hídrica para atender à demanda, promover o desenvolvimento e superar a vulnerabilidade de acesso ao recurso em regiões sujeitas à escassez. É preciso também modernizar a infraestrutura existente”.
Ele explicou que a demanda nacional para cobrir o déficit de água potável e saneamento está estimada em 500 bilhões de reais (cerca de 100 bilhões de dólares). No entanto, acrescentou que estão ocorrendo mudanças nos aspectos regulatórios para melhorar a atratividade de investimentos na área de água potável e saneamento nos setores público e privado.
Nesse contexto – questionou Giuliano Dragone – “em sua experiência no setor de saneamento e como integrante de uma empresa com atuação na área de projetos de reúso e dessalinização, qual a sua opinião sobre essas mudanças recentes? Quais são os pontos-chave em que ainda precisamos evoluir? E que papel os projetos de reúso e dessalinização desempenham na construção de uma gestão sustentável da água? ”
Respostas de Giuliano Dragone
Dragone falou sobre a situação atual do Brasil em termos de serviços de água, esgoto e tratamento de efluentes, citando o relatório do Sistema Nacional de Informação em Saúde (SNIS 2018) cujos dados são expressos em média 83,6%, 53% e 46, 2% respectivamente.
Ou seja, até 2018 no Brasil havia cerca de 34 milhões 194 mil pessoas sem acesso ao serviço regular de água potável; os excrementos e resíduos líquidos de quase 98 milhões não são coletados por canos e os efluentes de mais da metade do país (cerca de 112,7 milhões de pessoas) são despejados no meio ambiente sem nenhum tratamento.
Segundo Dragone, oficialmente o Brasil perde 38,45% da água potável que produz por conta de vazamentos em sua rede de distribuição. Ele disse que, independente desse número, a maioria das empresas não faz uma macro medição e não contabiliza essa perda, portanto, é possível supor que o número seja maior.
“Acho que para resolver esse problema – a situação hídrica atual – serão necessários mais de 500 bilhões de reais”, disse Pedroza.
Dragone prosseguiu explicando que houve um período de estagnação na alocação de projetos, mas que atualmente há “muita expectativa” em relação ao novo marco legal porque há maior clareza quanto à instalação dos serviços em casos de interesse local e comum quando as instalações atendem a mais de um município.
Outro ponto fundamental é a segurança de capital que as novas normas de referência regulatórias proporcionam aos investidores. Isso vai gerar maior estabilidade para concessões e contratos.
“A maior mudança estrutural que a lei traz é a abertura do mercado à concorrência, o que trará competitividade e eficiência. Para se ter uma ideia do que causa isso, só neste ano há mais de doze projetos de saneamento por 5,5 bilhões de reais”, disse.
Outro aspecto importante é a exigência da capacidade econômico-financeira das operadoras para cumprir os objetivos de atendimento à população, devendo a empresa apresentar um plano para tal.
Além do marco legal, ele destacou que para o país existem motores de crescimento para o setor que vão desde a meta de universalização da água e saneamento até 2033, a crise hídrica e a redução das perdas de água potável nas redes de distribuição, até um plano nacional de segurança hídrica que inclui dessalinização e reúso.
Entre os principais desafios do Brasil quanto à viabilização dos projetos, Dragone disse que ainda há aspectos jurídicos a se avançar “porque há muita judicialização e paralisação de estações ou plantas” devido a uma lacuna na formação de autoridades no assunto.
Pedroza acrescentou em consonância com o que foi afirmado por Dragone, que o Plano Nacional de Segurança Hídrica deveria ter uma presença maior de reúso e dessalinização.
“Deve ser um plano mais amplo para reduzir as perdas e incorporar a dessalinização e o reúso em maior escala, além do saneamento descentralizado”. Ele falou da importância da qualidade dos documentos de licitação e dos projetos de engenharia, já que “o maior desafio não está só no aspecto financeiro, mas também na capacidade de execução”.
Sustentabilidade hídrica industrial
Dando continuidade à dinâmica do fórum, Pedroza expressou sua percepção sobre o avanço da indústria brasileira para uma gestão cada vez mais eficiente da água, “não só na eficiência interna no uso da água, mas na governança como um todo com uma maturidade que implica análise das vulnerabilidades do recurso e envolvimento com o contexto e atores externos ”.
Ele abriu a entrada do segundo palestrante afirmando que o Brasil já passou por graves crises hídricas em certas regiões que afetam grandes e, principalmente, pequenas empresas. Ele perguntou “Nesse contexto, em sua experiência em sustentabilidade industrial e como membro de uma empresa com projetos e iniciativas de destaque neste contexto, você pode nos dizer onde evoluímos nos últimos anos e onde devemos continuar? Quais soluções técnica e economicamente viáveis podemos aplicar para minimizar a vulnerabilidade? E qual o papel dos projetos de reúso e dessalinização na construção da gestão sustentável da água nas empresas?
João Bosco respondeu que no Brasil existem bons exemplos de empresas que têm gestão de classe mundial. “Acredito que a ArcelorMittal seja uma dessas empresas” e, para argumentar, detalhou o projeto de uma planta de dessalinização que a empresa está desenvolvendo no estado do Espírito Santo.
A planta, que deve entrar em operação no ano que vem, está sendo construída na região metropolitana de Vitória e atenderá a maior planta siderúrgica da América.
“Em 2015 tivemos – no Espírito Santo – uma crise hídrica muito severa que já havia surgido no Brasil e a equipe da ArcelorMittal já vinha monitorando desde 2013. Em 2014 estruturamos um plano estratégico de água que contemplava todas as possibilidades de vulnerabilidade de acesso ao recurso e gestão de riscos”, comentou.
Concluído esse planejamento, no final de 2014, a forte crise no Espírito Santo começou em 2015 e a siderúrgica iniciou um plano para reduzir o consumo de água doce. Para isso, foram realizadas ações como a modernização da Planta de Tratamento de Água de Reúso (ETA-R) com capacidade de tratamento de 400m³/h.
“É importante destacar que a planta -siderúrgica- foi projetada para o uso intensivo de água do mar direta -sem dessalinização- apenas com tratamento para evitar incrustações. O processo de uma siderúrgica exige um grande volume de água em diversos processos que incluem o resfriamento de equipamentos e a geração de energia elétrica”, afirmou.
Na época da crise de 2015, a água doce representava 4% do consumo total. “Esse percentual representou 2.847 m3/h e tínhamos um alto índice de recirculação desse recurso porque o cuidado com a água doce sempre foi uma prioridade para a empresa.”
Ele garantiu que a siderúrgica havia planejado a dessalinização antes da crise, mas reduziu os prazos. Para isso ele completou que era natural esperar que a disponibilidade de água doce fosse restringida devido ao aumento demográfico e econômico da localidade.
“A pressa com que nos comprometemos a construir a segurança hídrica do nosso negócio com reúso e dessalinização serviu para que o Governo nos tivesse como exemplo”, disse.
Destaques do projeto
João Bosco Reis da Silva deu detalhes do projeto da planta de dessalinização, destacando que a obra teria o valor de 50 milhões de reais e que empregaria mais de 120 trabalhadores em seu pico. Ele também listou que:
- É um projeto alinhado à estratégia de segurança hídrica do Governo do Estado do Espírito Santo.
- Tem capacidade para produzir até 500m³/h (com possibilidade de futura expansão), constituindo uma importante fonte alternativa de consumo de água doce do Rio Santa María de Vitória.
- Será a maior planta de dessalinização de água do mar do Brasil e a primeira do Grupo ArcelorMittal no mundo.
- Toda a água gerada na planta será utilizada para uso industrial.
Pedroza completou a intervenção de João Bosco com o exemplo do polo industrial de Camaçari, como mais um caso de gestão eficiente da água em que mais de 70 indústrias aplicam fontes diversas como as superficiais, subterrâneas e até reúso.
“Fazendo uma analogia com o que Dragone falou sobre a demanda por infraestrutura, o projeto de reúso que implantamos em Camaçari foi viável porque já existia uma infraestrutura de tratamento. Se a infraestrutura de saneamento cresce no país, a possibilidade de reúso é ampliada porque gera alternativas de integração de tecnologias”, comentou.
João Bosco aproveitou esse comentário para falar sobre o aproveitamento da infraestrutura. “O projeto de dessalinização em Tubarão tem um custo competitivo porque já existia um canal de captação de água do mar e já gerávamos energia elétrica, o que facilita todo o processo”.
“A água produzida por dessalinização e reúso deve ser competitiva – em termos de taxas – em relação à extraída de fontes convencionais, nisso há uma grande discussão. Os incentivos também são necessários, como Giuliano mencionou em seu discurso”, acrescentou.
Reúso na agricultura
Em seguida, o representante da ALADYR, PEDROZA, cedeu a palavra ao professor Rafael Bastos para falar sobre o tratamento de efluentes a ser utilizado como fonte de irrigação agrícola e nutrientes para o solo. “Temos uma prática – reúso de efluentes para a agricultura – bastante difundida no mundo e há várias experiências de regulamentação e aplicações indevidas que geraram problemas de saúde”
“Na sua opinião, qual a importância da avaliação de risco na regulamentação do reúso da água na agricultura? Como o Brasil é avaliado na questão do reúso para fins agrícolas? E o que devemos melhorar? ” ele perguntou ao professor.
Bastos respondeu que o seu enfoque está na fundamentação científica para a regulação da qualidade da água gerada a partir do reúso para aplicação na agricultura e que esta reside principalmente nas motivações para preservar a saúde pública e reduzir o impacto ambiental da atividade.
Como exemplo mundial de reúso agrícola de efluentes, ele citou Israel, “devido à necessidade de uma gestão eficiente da água. Reutiliza grande parte de seus efluentes urbanos. É um esquema muito interessante no qual sua política nacional de gestão hídrica desempenha um papel importante. Eles são um emblema no mundo por suas políticas públicas de incentivo fiscal”.
“O reúso da água é um imperativo e a agricultura é o grande consumidor”, frisou ao dizer que é necessário acelerar esta prática, principalmente em contextos de crise hídrica.
Afirmou que no Brasil houve iniciativas nesta área que mobilizaram grandes setores da sociedade, mas não tiveram respaldo político e que recentemente houve uma maior incorporação do meio acadêmico à consultoria na elaboração de instrumentos jurídicos que contemplem os aspectos científicos da avaliação de risco.
Fez um percurso histórico pela discussão e pelos pontos de convergência e divergência sobre a aplicabilidade da norma e as instituições que se encarregariam de zelar pelo seu cumprimento. “Falou-se muito sobre os padrões de qualidade da água reciclada em função do uso e foi levada em consideração uma legislação de referência como a norte-americana”.
Como conselho, disse que o Brasil deve se preparar para legislar a respeito do reúso potável porque as condições de seca e escassez assim requerem, mas que ao mesmo tempo existem processos para levar os efluentes com a qualidade necessária ao consumo humano.
Por fim, a crise sanitária causada pela pandemia (covid-19) não faltou no debate e Pedroza a utilizou como argumento para a necessidade nacional de atender às comunidades das regiões mais periféricas e integrar soluções de saneamento centralizadas e descentralizadas para garantir condições adequadas higiene, saúde e desenvolvimento.
Os representantes da ALADYR agradeceram aos palestrantes pela disponibilidade em participar e compartilhar conhecimento e opiniões sobre o caminho que o Brasil deve seguir para reduzir lacunas e alcançar o desenvolvimento em regiões afetadas pela falta de serviços básicos. O fórum está disponível, com acesso livre e aberto, no Canal YOUTUBE da ALADYR.
Fonte: Imprensa ALADYR
SOFIA TAPIA BIN – Pasante
pasante@aladyr.net