Experimentos buscam demonstrar teorias sobre como o hidrogênio fragiliza estruturas metálicas, o que pode ajudar a contornar os problemas causados
O uso de hidrogênio como fonte de energia enfrenta um grande obstáculo: os danos provocados nas tubulações metálicas que fazem seu transporte. Apesar do fenômeno da fragilização (em inglês, hydrogen embrittlement) ser descrito há mais de 150 anos, as teorias que explicam essa deterioração ainda não foram demonstradas experimentalmente. Em artigo publicado na revista Advanced Engineering Materials, um grupo de pesquisadores, com participação de cientistas da USP, revisa as teorias sobre a fragilização, expõe as dificuldades para sua demonstração em laboratório e propõe dois experimentos para detectar o hidrogênio e seus efeitos nas estruturas dos materiais.
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“Após a produção, o hidrogênio precisa ser transportado para a indústria e para os consumidores domésticos por meio de tubulações. O hidrogênio causa fragilização inevitável dessas tubulações, o que pode ocasionar acidentes sérios. Se houver uma mistura de gás natural e hidrogênio nessas tubulações, apenas 1% de gás hidrogênio já é suficiente para fragilizá-las”, explica para o Jornal da USP o físico Matheus Tunes, professor da Montanuniversität Leoben, na Áustria. Um dos autores do artigo, Tunes é graduado pelo Instituto de Física (IF) da USP. “Há determinadas estratégias no design de materiais que reduzem o efeito deletério do hidrogênio por meio de seu aprisionamento. Mas essas mesmas estratégias não garantem que os materiais eventualmente não venham a sofrer degradação. O hidrogênio traz para a metalurgia um problema de materiais operando em ambientes extremos”.
Matheus Tunes – Foto: Arquivo pessoal
O professor Cláudio Schön, da Escola Politécnica (Poli) da USP – que pesquisa fratura e fadiga de materiais, além da influência do hidrogênio nesses dois fenômenos – participou da elaboração do artigo de revisão por meio de mentoria e validação das informações apresentadas, particularmente. “Além disso, dada a experiência adquirida como participante do grupo de energia, no programa de eixos temáticos da USP, expandimos o contexto do artigo para o aspecto do transporte de hidrogênio verde que se faz necessário para combater os efeitos do aquecimento global”, relata. “Esse estudo demonstra que novas técnicas experimentais para detecção do hidrogênio são requeridas para o avanço na validação das teorias existentes. Detectar o hidrogênio móvel na microestrutura dos materiais é um grande desafio para a metalurgia contemporânea”.
Cláudio Geraldo Schön – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
De acordo com o físico, no século 19, durante a Segunda Revolução Industrial, a Inglaterra dominava o desenvolvimento e a produção de aço, e uma das aplicações mais comuns na forma de fios e arames. “Esses fios eram armazenados em galpões sujeitos a condições ambientais, o que levava a corrosão atmosférica do ferro, formando ferrugem”, relata. “A indústria da época desenvolveu um método de limpeza no qual os fios são lavados com ácido sulfúrico, processo hoje conhecido como decapagem, ou ‘pickling’. Após essa lavagem, foi observado na ocasião que os fios de aço perdiam sua ductilidade, ou seja, se tornavam mais frágeis”.
Tunes aponta que o metalurgista britânico William H. Johnson decidiu investigar cientificamente esse fenômeno por volta de 1874, submetendo diversos fios de ferro e aço a um banho de ácido sulfúrico, e mediu algumas de suas propriedades mecânicas. “Ele percebeu que o ácido inevitavelmente reduz a elongação sob tensão [variação do comprimento] desses materiais ao ponto de fragilizá-los completamente”, afirma. “Durante testes de flexão ou dobramento, Johnson observou bolhas e espuma emergindo da superfície de fratura desses fios quando expostos ao ácido. Para observar tais bolhas, os metalurgistas britânicos usavam a língua para umedecer a superfície de fratura!”.
“Johnson sugeriu que essas bolhas eram formadas por gás hidrogênio, que ingressaria no metal durante a decapagem, e depois seria liberado na superfície durante a fratura. Curiosamente, Johnson propôs essa ideia em uma época em que a teoria atômica não era completamente desenvolvida, não se sabia com precisão, por exemplo, o tamanho dos átomos! O modelo atômico de Niels Bohr foi desenvolvido em meados de 1913”, observa o pesquisador. “Johnson publicou suas descobertas em dois artigos científicos em 1875. Como foi ele quem mediu e reportou pela primeira vez as propriedades mecânicas dos fios de ferro e aço após a ação do ácido, que causa a entrada do hidrogênio dentro do metal, ele é considerado o descobridor da fragilização por hidrogênio, embora sua permeabilidade em metais tenha sido estudada anteriormente pelos cientistas franceses Saint-Claire Deville e Louis Cailletet”.
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Validação experimental
“Atualmente, as teorias desenvolvidas para explicar esse fenômeno focam na análise das interações entre o hidrogênio e os metais no nível atômico e nos defeitos microestruturais na nanoescala. Uma vez que o hidrogênio é o menor átomo existente, medi-lo na microestrutura dos metais é um dos maiores desafios para a ciência experimental contemporânea”, diz o físico. “O objetivo do artigo de revisão foi demonstrar à comunidade científica que, embora esse problema exista há mais de 150 anos, ainda estamos apenas no começo de entendê-lo por meio da Física, haja visto as limitações existentes entre teoria e validação experimental”.
A tomografia por sonda atômica (APT, do inglês Atom Probe Tomography) é a única técnica experimental que permite identificação de hidrogênio em escala atômica, enfatiza Tunes. “Apesar de resolver a posição dos átomos de hidrogênio apenas quando aprisionados em armadilhas na microestrutura dos metais, ela não mede o ‘hidrogênio-em-ação’, ou seja, que se move nos materiais e interage com seus átomos e defeitos, causando sua fragilização”, ressalta. “Na verdade, aprisionar o hidrogênio é uma estratégia para combater a fragilização, mas medidas dessa natureza não respondem se as teorias sobre o fenômeno são válidas ou não”.
“Há muitos aspectos críticos no uso da APT. Por exemplo, para garantir que o hidrogênio permaneça no metal antes das medições, esses experimentos precisam ser feitos em condições criogênicas [submetidos a baixas temperaturas], e apenas três laboratórios do mundo possuem essa instrumentação, o que limita sua ampla validação”, diz o pesquisador. “O maior problema é diferenciar o hidrogênio carregado do que está presente na atmosfera e entra no material durante as medidas, pois o vácuo da APT não é perfeito, o que contamina a amostra. Para contornar esse problema, a grande maioria dos experimentos usa outro elemento químico, o deutério, não medindo o hidrogênio em si”.
Atualmente, o grupo de pesquisa do professor Tunes na Montanuniversität Leoben realiza dois projetos que visam detectar hidrogênio e seus efeitos nas estruturas dos materiais. “No primeiro, eu proponho detectar o ‘hidrogênio-em-ação’ nos metais por meio da dispersão que ele causa na ressonância plasmônica, um efeito físico que eu descobri experimentalmente nos Estados Unidos em 2019”, planeja o físico. “No segundo projeto, nós vamos construir um ‘canhão de hidrogênio’ [HydroGun] que irá acelerar e implantar íons de hidrogênio diretamente na microestrutura dos materiais e na resolução atômica”.
“Uma das teorias de fragilização por hidrogênio traz a hipótese de que quando o elemento químico entra na estrutura dos metais de transição, o elétron do hidrogênio interage com os elétrons dos metais, causando repulsão e levando à formação de trincas, porém tal efeito nunca fora observado em tempo real e em escala atômica”, revela Tunes. “No momento, estamos tentando obter financiamento para a execução de ambos os projetos, e a USP é uma das principais instituições parceiras desses projetos”.
Capa da publicação com o artigo – Foto: Divulgação