Recheados de “carbono azul”, manguezais ganham destaque no combate às mudanças climáticas

Elevação do nível do mar e aquecimento da atmosfera ameaçam a conservação desses ecossistemas costeiros, que são berçários da vida marinha e podem conter duas vezes mais carbono por hectare do que florestas tropicais.
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Manguezal de Cananeia (SP) com guarás na maré baixa – Foto: Herton Escobar /USP imagens

Elevação do nível do mar e aquecimento da atmosfera ameaçam a conservação desses ecossistemas costeiros, que são berçários da vida marinha e podem conter duas vezes mais carbono por hectare do que florestas tropicais

Texto: Herton Escobar
Arte: Guilherme Castro

Nascido e criado na lama, com um pé na terra e outro no mar, hora seco, hora submerso pelo incansável vai-e-vem das marés, o manguezal é um ecossistema acostumado a mudanças e adversidades. Nem mesmo ele, porém, está imune ao impacto das mudanças climáticas que açoitam o planeta com intensidade cada vez maior. “O manguezal aguenta quase tudo, mas até ele tem um limite”, diz a professora Yara Schaeffer Novelli, do Instituto Oceanográfico (IO) da USP, matriarca acadêmica da ecologia de manguezais no Brasil. Modificações ambientais que costumavam ocorrer ao longo de milhares de anos estão ocorrendo, agora, num único ciclo de vida, impulsionadas pela ação humana. “São alterações muito grandes num tempo muito curto. Não há ecossistema que suporte isso”, alerta a professora ao Jornal da USP

Isso é má notícia não só para os bichos e plantas desses ecossistemas costeiros, mas também para os seres humanos em geral, incluindo aqueles que nunca pisaram nem planejam afundar um dia os pés na lama de um manguezal. Distribuídos ao longo das franjas de quase toda a linha de costa brasileira — do extremo Norte do Amapá até meados do litoral de Santa Catarina — os manguezais cobrem apenas 0,16% do território brasileiro, mas possuem uma relevância socioambiental que se projeta muito além de sua extensão territorial. 

 

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Pôster com dados e ilustrações dos manguezais no Brasil, produzido especialmente para esta reportagem. Para baixar uma versão em alta resolução, clique aqui.

Entre os vários serviços ambientais gratuitos que eles prestam à espécie humana, um que vem ganhando destaque nos últimos anos é a sua impressionante capacidade de estocar “carbono azul” — um termo colorido usado para se referir ao carbono de ecossistemas marinhos e costeiros, em contraste com o “carbono verde” associado às florestas e outros ecossistemas terrestres. Estimativas indicam que um hectare de manguezal no Brasil pode armazenar entre duas e quatro vezes mais carbono do que um mesmo hectare de outro bioma qualquer — incluindo a floresta amazônica —, segundo um estudo publicado no início de 2022 na revista Frontiers in Forests and Global Change.  

A maior parte desse carbono fica estocada no solo lamoso do manguezal, onde a ausência de oxigênio retarda, ou até impede completamente, a decomposição da matéria orgânica que está soterrada ali. O resultado é um reservatório natural de longo prazo que pode ser encarado tanto como um tesouro enterrado quanto uma bomba-relógio prestes a ser detonada, dependendo do que acontecer com esses ecossistemas daqui para frente. Se os manguezais forem protegidos e esse carbono permanecer no solo, ótimo! Se eles forem destruídos e esse carbono for parar na atmosfera, será como borrifar gasolina no fogo do aquecimento global.  

“É um reservatório que precisa ser deixado quieto”, resume o ecólogo brasileiro André Rovai, autor do estudo na Frontiers in Forests and Global Change e pesquisador assistente na Universidade do Estado da Louisiana, nos Estados Unidos. Não só por conta do que já está estocado nele, mas por todo o carbono que ainda pode ser depositado ali. Além de ótimos guardadores, os manguezais também são excelentes sorvedouros de carbono, tanto por meio do crescimento de suas florestas, que retiram gás carbônico da atmosfera, quanto pelo acúmulo da matéria orgânica que desce pelos rios e fica depositada na sua lama, como se ela fosse um filtro.  

“O manguezal é um meio do caminho entre a terra e o mar”, descreve Rovai. “Ele produz sua própria biomassa e ainda armazena parte do carbono que flui de dentro do continente.” Estimativas globais, segundo ele, sugerem que os manguezais podem sequestrar quase 1 bilhão de toneladas de carbono por ano, o equivalente a 10% de todo o carbono emitido anualmente no mundo pela espécie humana (10 bilhões de toneladas).

“Os manguezais são um grande hotspot de carbono”, reforça o professor Roberto Barcellos, do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que nos últimos anos passou a se dedicar intensamente à pesquisa do carbono azul. “Não existe ecossistema que acumule tanto carbono quanto eles.”

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Solo lamoso de um manguezal em Cananeia (SP) com propágulos e pneumatóforos (raízes aéreas ) de mangue preto em destaque – Foto: Herton Escobar / USP imagens

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A quantidade de carbono por hectare pode variar bastante de um lugar para outro, dependendo das particularidades ambientais de cada localidade. Afinal de contas, “cada mangue é um mangue; não existem dois manguezais iguais”, costuma dizer a professora Yara. Há muitas variáveis que ainda precisam ser melhor estudadas para encaixar os manguezais com maior precisão científica nos inventários nacionais e na arquitetura global dos fluxos de carbono, incluindo suas emissões naturais de dióxido de carbono, metano e outros gases naturais do efeito estufa.

Mas uma coisa que já fica claríssima nos dados, segundo os especialistas, é que os manguezais são uma peça importante no quebra-cabeça das mudanças climáticas globais. Uma peça que precisa ser não apenas protegida, como multiplicada. “Preservar os manguezais é essencial, mas não só isso”, destaca Barcellos. “É preciso restaurar o que já foi perdido e criar novas áreas de manguezal onde for possível.”

Ameaça climática

O Brasil abriga uma das maiores áreas de manguezal do planeta: 1,4 milhão de hectares, segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, publicado em 2018 pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Cerca de 80% desses ecossistemas estão concentrados em três Estados (Maranhão, Pará e Amapá) e 87% estão inseridos em alguma unidade de conservação, como parques, reservas ou áreas de proteção ambiental (APAs). Historicamente, estima-se que 25% das áreas originais de manguezal no Brasil já tenham sido suprimidas desde o início do século 20, segundo o Atlas.

Esses dados referem-se ao ecossistema manguezal como um todo, incluindo suas florestas (bosques de mangue) e outras feições diretamente associadas a elas, como as planícies alagadas e os apicuns, que são áreas mais secas e com menor cobertura vegetal, porém igualmente relevantes do ponto de vista ecológico do ecossistema.

Olhando especificamente para as formações florestais, o Brasil tem pouco mais de 1 milhão de hectares de bosques de mangue distribuídos ao longo de sua zona costeira, segundo o mapeamento mais recente da organização MapBiomas, que traz dados atualizados até 2021. Comparado a 2001, isso representa uma redução de 2%. Comparado a 1985, porém, houve um aumento de 4% — números que refletem tanto uma dinâmica de transformações naturais dos manguezais quanto pressões antrópicas (de origem humana) às quais eles estão submetidos. Excluindo perdas e ganhos mais periféricos, o MapBiomas estima que 84% da cobertura de florestas de mangue no Brasil permaneceu estável nesses últimos 37 anos.

“Entre mortos e feridos no cenário ambiental do Brasil, os manguezais são um exemplo muito positivo de resiliência”, diz o coordenador técnico de mapeamento de zonas costeiras do MapBiomas, Cesar Diniz. Três quartos dessas florestas de mangue (75%) estão dentro de áreas legalmente protegidas, segundo a publicação.

A má notícia é que nada disso é garantia de imunidade às mudanças climáticas que já estão em curso e tendem a se agravar muito mais ainda nos próximos anos. As principais ameaças são a elevação do nível do mar e o aumento — tanto na frequência quanto na intensidade — da ocorrência de eventos climáticos extremos, como ressacas, tempestades e vendavais, com capacidade para submergir, erodir e agredir esses ambientes costeiros que são ocupados pelos manguezais.

Em última instância, segundo os especialistas, a capacidade dos manguezais de sobreviver a esse intenso bombardeio climático dependerá da disponibilidade de áreas para as quais eles possam migrar em busca de condições mais favoráveis, à medida que seus territórios atuais são redesenhados no mapa pelo avanço das marés.

Simplificando as coisas: as árvores de mangue são as únicas capazes de sobreviver em áreas de influência da maré, por causa da alta salinidade do ambiente que é inundado pela água do mar. Qualquer outra vegetação terrestre morre. Sendo assim, à medida que o nível do mar aumenta e as ondas avançam sobre a linha da costa e os estuários, a fronteira de ocupação dos manguezais, teoricamente, também se desloca em direção à terra firme, puxada pelo alcance das marés. Se por um lado eles podem ser devorados pela erosão, por outro podem se expandir continente adentro. Isto é, se não houver uma estrada, indústria, condomínio, montanha ou tanque de camarão no meio do caminho para impedir sua passagem.

“Se o manguezal não tiver espaço para se acomodar, ele acaba”, resumiu a geóloga e oceanógrafa Célia Souza, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Ambientais da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente (IPA-Sima) do Estado de São Paulo, em um seminário sobre o tema realizado em julho deste ano: Manguezais na década dos oceanos – Manejo, recuperação e participação de pescadores artesanais e catadores. “Infelizmente, as planícies costeiras são as melhores para construção civil”, acrescentou a geógrafa Viviane Buchianeri, especialista em manejo de áreas protegidas e fiscalização ambiental da Fundação Florestal (FF), vinculada ao governo paulista.

Ou seja, o risco de conflito entre manguezais migrantes e infraestrutura humana instalada é grande, principalmente nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil, onde as taxas de ocupação da região costeira são maiores e as áreas remanescentes de manguezal estão bastante fragmentadas. Já na costa Norte do País (Maranhão, Pará e Amapá), onde está concentrada a maior parte dos manguezais brasileiros, a movimentação tende a ser mais pacífica, em função da menor densidade demográfica nas áreas de mangue daquela região.

“Os efeitos podem ser variados. É provável que haja expansão de manguezais em alguns lugares e retração, em outros”, observa Clemente Coelho Junior, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco. O desfecho, segundo ele, vai depender de diversas variáveis climáticas, oceanográficas e geográficas. Entre elas: o grau e a velocidade de elevação do nível do mar, a quantidade de sedimentos que chegam pelos rios, as taxas de sedimentação e a topografia de cada localidade.

Em grande parte do litoral paulista, por exemplo, além de toda a ocupação humana já consolidada, existe uma muralha natural gigantesca bloqueando a passagem, que é a Serra do Mar. Os manguezais são capazes de muitas façanhas, mas não sobem montanhas. “Ali o manguezal está encurralado, não tem muito para onde fugir”, sentencia Coelho Junior.

 

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