Bahia inspira outros estados com seu modelo de regionalização do saneamento

O modelo de microrregiões de saneamento do estado foi instituído um ano antes do novo Marco Legal e parte dos Territórios de Identidade, uma forma de regionalização para o planejamento de políticas públicas baseada na realidade local

O modelo de microrregiões de saneamento do estado foi instituído um ano antes do novo Marco Legal e parte dos Territórios de Identidade, uma forma de regionalização para o planejamento de políticas públicas baseada na realidade local

O processo de regionalização da prestação de serviços de saneamento básico da Bahia começou bem antes da aprovação do Marco Legal do Saneamento (Lei 14.026/2020 que alterou a Lei 11.445/2007). A ideia de dividir os municípios do estado da Bahia em microrregiões de saneamento, estabelecidas por lei complementar em 2019, foi replicada por outros estados, como o Ceará, Paraná, Rio Grande do Norte, e tornou-se o tipo de arranjo mais usado para atender a diretriz federal de regionalização.

Pioneira, a Constituição do Estado da Bahia (de 1989 alterada em 1999) define o Saneamento Básico como um direito essencial, o que não ocorreu na Constituição Federal, e garantiu a todos o direito a níveis adequados e crescentes de salubridade ambiental através da Lei estadual 11.172/2008, que institui princípios e diretrizes da Política Estadual de Saneamento Básico. Em 2007 a Bahia criou o programa Água para Todos – referência nacional para soluções para o Rural e Semiárido –, e em 2019, criou sua lei de regionalização (LC 48/2019).

A Bahia também é um dos oito estados que instituíram suas instâncias microrregionais, etapa posterior à aprovação da lei estadual de regionalização dos serviços de saneamento. Cinco delas já aprovaram seus planos regionais de saneamento em processos participativos que tiveram início em 2020. Essa informação é fruto de um levantamento realizado pelo Instituto Água e Saneamento (IAS) sobre a implementação do Marco Legal. Os resultados foram apresentados durante o encontro “As regionalizações do saneamento nos estados – perspectivas e desafios dois anos após a aprovação do Marco Legal” e estão disponíveis de forma detalhada em artigo publicado em nosso site.

Para detalhar a experiência do estado, o IAS entrevistou o conselheiro de Administração da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A. (Embasa) e do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), Abelardo de Oliveira Filho. Engenheiro Civil com 46 anos de experiência em saneamento ambiental, Oliveira também foi Secretário Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades (2003-2007) e Presidente da Embasa (2007-2015), empresa da qual é funcionário.

O IAS também preparou uma matéria especial sobre o processo de regionalização no Ceará, estado que se inspirou no modelo da Bahia e recentemente leiloou a maior Parceria Público-Privada (PPP) de esgotamento sanitário do país. Clique aqui para ler.

Para Abelardo, a regionalização é um instrumento muito importante para a área de saneamento básico em todo o país – sobretudo na região Nordeste. “Quando fui Secretário Nacional de Saneamento do Ministério das Cidades, fui uma das pessoas que mais discutiu durante a elaboração da Lei de Consórcios, que é um dos instrumentos que prevê a constituição para regionalização dos serviços por meio da gestão associada, autorizada por consórcio público ou por convênio de cooperação”, ressalta.

No entanto, o especialista tem sérias críticas à revisão do Marco Legal de saneamento,  aprovada em 2020. “A Lei Nacional de Saneamento Básico instituída também na nossa gestão, em 2007, tratava da questão da regionalização nos seus artigos 14, 15 e 16, infelizmente foram revogados até de uma forma inusitada. A Lei 14.026 define a estrutura da regionalização no artigo 3º que trata dos conceitos”, em vez de estar em capítulo específico, como seria mais apropriado.

Oliveira defende ainda o protagonismo dos municípios na decisão sobre como o atendimento de saneamento básico deve ocorrer em seus territórios e acredita na possibilidade de alteração no Marco Legal, caso haja mudança no Executivo Federal. Para ele, alguns pontos da lei são inconstitucionais. Confira os trechos mais relevantes da entrevista.

Na vanguarda do processo

A Bahia buscou definir sua política estadual de saneamento tendo como base a Lei Federal 11.445/2007, que traçou as diretrizes da política nacional de saneamento básico. Em 2008 o estado aprovou a Lei 11.172, que traz entre seus princípios fundamentais a regionalização dos serviços de saneamento e o fortalecimento da Embasa enquanto empresa pública responsável pela execução da política estadual do setor. O artigo 8º define, como princípio básico, “uma regionalização consistente no planejamento, na regulação, na fiscalização e prestação dos serviços em economia de escala e pela constituição de consórcios públicos integrados pelo estado e pelos municípios de uma determinada região”, complementa Abelardo.

Em 2019, a Bahia criou 19 microrregiões de saneamento, utilizando como base uma divisão de planejamento para a execução de políticas públicas que o estado estabeleceu em 2007, os “Territórios de Identidade”. Considerou também a Região Metropolitana (RM) de Salvador, instituída em 1973, como uma divisão para o saneamento. A RM de Salvador conta com uma entidade metropolitana para tratar da função de interesse comum do saneamento e criou um fundo de universalização. Já a Região Metropolitana de Feira de Santana, por não ter instituído uma governança metropolitana, teve seus municípios incluídos na microrregião do Portal do Sertão, para debaterem exclusivamente sobre a função pública de saneamento básico.

“A criação de microrregiões de saneamento está em consonância com o Estatuto da Metrópole (Lei 13.089/2015), com o Marco Legal (Lei 14.026/2020) e com a política estadual de saneamento básico. Essa integração regional é imprescindível para garantir o equilíbrio do saneamento básico nos mais diversos municípios do estado, devido à complexidade desses serviços, principalmente daquelas regiões que são abastecidas por sistemas integrados, e são muitos os sistemas integrados aqui na Bahia e também no Nordeste brasileiro”, explica Abelardo.

 

MAPA: Microrregiões de Saneamento da Bahia

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Fonte: Saneamento 2021 (IAS)

Total de municípios e população por Microrregião

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Fonte: Observatório do Marco Legal do Saneamento (IAS)

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Fonte: Observatório do Marco Legal do Saneamento (IAS)

Territórios de identidade

Os Territórios de Identidade são uma forma de regionalização para o planejamento de políticas públicas baseada na realidade local. Ao todo, o estado está dividido em 27 territórios de identidade, criados através da Lei Estadual 10.705/2007. A divisão tem origem nas lutas de movimentos sociais ligados à agricultura familiar e à reforma agrária. Para defini-los, foram ouvidas as representações de cada comunidade. 

Cada território é visto, de acordo com o governo do estado, como “um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo, caracterizado por critérios multidimensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura, a política e as instituições, e uma população com grupos sociais relativamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade, coesão social, cultural e territorial”.

A regionalização proposta na Bahia buscou a obtenção de economias de escala, “que é uma característica inerente ao setor de saneamento” e necessária para viabilizar “o investimento, o custeio da integração da infraestrutura existente a novos mananciais de água, para permitir o estudo de sistemas integrados de esgoto, estudos de utilização de água de reúso e experimentação de novas tecnologias e a existência de sistemas de subsídios integrados”, explica Abelardo.

Viabilidade econômico-financeira das microrregiões

Questionado sobre a utilização do critério de sustentabilidade econômico-financeira das microrregiões, conforme prevê o Marco Legal, o entrevistado destacou que esse não foi o  foco principal, até porque foram instituídas antes da lei federal. “A Bahia tem uma característica, que é praticamente semelhante nos estados do Nordeste. A Embasa trabalha em 368 municípios, sendo que 50 deles representam praticamente 80% da sua receita. Alguns municípios que efetivamente a Embasa estaria pagando para prestar os serviços”. 

Durante participação no evento “As regionalizações do saneamento nos estados – perspectivas e desafios dois anos após a aprovação do Marco Legal”, realizado pelo IAS, Abelardo reforçou que, quando a Bahia criou as microrregiões, estava se pensando na prestação dos serviços pela Embasa utilizando subsídios cruzados como um todo e não necessariamente na viabilidade econômico-financeira de cada uma das regiões. Seguindo esse critério, apenas cinco das 19 microrregiões seriam viáveis.

Situação dos contratos de programa

Outro “absurdo”, segundo o entrevistado, foi o processo de  comprovação da capacidade econômico-financeira dos contratos vigentes das companhias estaduais, no caso a Embasa, em que o Decreto 11.030/2021 torna irregular um contrato vigente, firmado antes do Marco Legal. “São dois absurdos, primeiro a exigência [da comprovação] e segundo que poderá criar problemas para o gestor municipal, porque se esse rompimento se der de forma litigiosa, tem pagamento de investimentos ainda não amortizados, isso pode criar dificuldades para o próprio município, inclusive tendo que pagar uma quantia ainda maior. Então eu entendo que esses decretos deveriam ser revistos”.

 

Situação dos contratos de programa (Embasa)
Após comprovação da capacidade econômico-financeira (Decreto 10.588/2020)

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Fonte: Painel do Marco Legal do Saneamento (IAS)

Perguntado sobre o que vai acontecer com os contratos classificados como “irregulares”, Abelardo ponderou que acha que existe a perspectiva realmente de se rever esses dispositivos: “se um dos argumentos da alteração da lei era para criar segurança jurídica, isso é o contrário, vai criar uma insegurança jurídica muito grande. Qualquer município que quiser vai questionar, ‘que diabo é isso, por que vocês estão considerando irregular um contrato regular, vigente?’. Não tem condições de considerar”, argumenta.

“O que eu defendo é que esses municípios que ficaram fora podem ser contratados como prestação direta, aliás, eu refaço, por ser prestação direta, nem precisa de contrato, é outorga. Ou seja, uma microrregião ou região metropolitana pode criar uma empresa interfederativa com essa finalidade, ela pode outorgar para qualquer entidade integrante da administração indireta de qualquer integrante da região metropolitana ou da microrregião”, explica.

Municípios com prestação direta (SAAEs e Empresas Públicas)

Outro ponto de destaque da Lei da Bahia é que houve o  cuidado de preservar a autonomia dos municípios que já têm a prestação direta por Serviços Autônomos de Água e Esgoto (SAAE) ou por empresa pública. Abelardo explicou, durante o evento “As regionalizações do saneamento nos estados”, que a regionalização não significa necessariamente uma prestação regionalizada, porque os contratos existentes são contratos individuais. “É possível  trabalhar no futuro com um único contrato [microrregional], mas tem todas as questões que são colocadas: aqui na Bahia ainda não tem serviços privados por concessão, mas existem cerca de 50 SAAEs que estão embutidos nessas microrregiões e tivemos o cuidado de não passar por cima da autonomia do município. A titularidade é compartilhada, mas o município que quiser e que já tenha mais de 10 anos de prestação de serviços por um SAAE ou por uma empresa pública pode simplesmente notificar a entidade microrregional e dizer que vai continuar prestando sem passar  pelo crivo do colegiado”.

Quem está ficando para trás

Para o entrevistado, é fundamental alterar o Marco Legal para garantir o atendimento de localidades menos lucrativas. “Obviamente se vingar essa lei e esses principais artigos que transformam numa institucionalização do monopólio privado, vai ficar muito difícil para esses setores, principalmente para as zonas rurais e para as pequenas localidades. Na modelagem de Alagoas, as localidades com menos de 1 mil habitantes ficaram fora do processo. E tem mais, os quatros SAAEs foram tomados de assalto, o município não teve como decidir, ou seja, vai ficar com as áreas subnormais e as áreas rurais, então os SAAEs dessas localidades vão ficar com as áreas que não são atendidas pela modelagem do setor privado”. 

Segundo Abelardo, em 2002 o percentual de abastecimento de água da população rural era de 25%. Em 2015, passou para 72,1%, incluindo rede convencional e cisternas do Água para Todos. “A Embasa está fazendo um estudo para verificar aquelas localidades onde é possível instalar fossas sépticas fabricadas dentro da técnica. Temos que trabalhar com essa perspectiva do estímulo às soluções alternativas, até mesmo pelos prestadores de serviço. Claro que tem uma dificuldade do que você considera serviço público, obviamente que uma solução individual não é um serviço público, mas se você consegue reunir um número de pessoas, você pode trabalhar com essa perspectiva de que o prestador de serviço possa também dar a manutenção em fossas”, complementa.

Já nas grandes cidades, Abelardo classifica o desafio como imenso. “Precisa efetivamente de requalificação urbana. Seguramente quem vai ficar para trás são as pessoas que vivem na periferia das grandes e médias cidades, nessas áreas consideradas subnormais, a população rural, as comunidades tradicionais, os pequeníssimos municípios, principalmente do Nordeste e do Norte do país. As áreas mais vulneráveis é que vão ficar para trás, muito embora, eu admito, que tem várias empresas em vários estados que não dão o verdadeiro valor a essas questões”, aponta.

 

Indicadores de atendimento total de água e esgoto por Microrregião (SNIS 2020)

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Observatório do Marco Legal do Saneamento (IAS)

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Observatório do Marco Legal do Saneamento (IAS)

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Observatório do Marco Legal do Saneamento (IAS)

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