Busca de soluções de ‘saneamento inclusivo’ para comunidades isoladas é tema de projeto premiado da Unesp de Ilha Solteira

Estudo avaliou uso de novas metodologias para tratamento de água e esgoto para 210 famílias de assentados e recebeu primeiro lugar em premiação de engenheiros da Sabesp.
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Três em cada quatro residências de áreas rurais no Brasil, entre as quais aquelas inseridas em comunidades isoladas, dispõem de condições precárias de saneamento básico, destinando o esgoto domiciliar para cursos d’água ou para sumidouros e fossas improvisadas ou rudimentares. Nesse cenário, uma nova metodologia, estudada por uma pesquisadora da Unesp e aplicada em um assentamento rural no município de Ilha Solteira, abriu caminho para a melhoria da qualidade de vida de 210 famílias e demonstrou aos assentados a viabilidade de soluções eficientes e de baixo custo para o tratamento de água e esgoto.

Como parte de sua pesquisa de mestrado, conduzida sob orientação dos docentes Liliane Lazzari Albertin e Maurício Augusto Leite, ambos da Faculdade de Engenharia do câmpus de Ilha Solteira (Feis), a engenheira Letícia Beatriz de Lima implementou e analisou sistemas de tratamento de água e de esgoto no assentamento rural “Estrela da Ilha”. A pesquisa, que resultou na dissertação de mestrado  “Saneamento em comunidades isoladas: implementação e análise de sistemas alternativos em um assentamento rural”, concluiu que os sistemas estudados “são economicamente acessíveis e apresentam boa eficiência de tratamento” para aplicação em comunidades isoladas Brasil afora, tais como aldeias indígenas e quilombolas.

Após a pesquisa, Letícia Beatriz de Lima, que é graduada em Engenharia Civil pela Unesp em Ilha Solteira, obteve o título de mestra em Recursos Hídricos e Tecnologias Ambientais no âmbito do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Engenharia Civil da Feis-Unesp. No mês passado, seu trabalho foi premiado com o primeiro lugar no Prêmio Jovem Profissional de 2022, promovido pela Associação dos Engenheiros da Sabesp (AESabesp) com o objetivo de destacar boas iniciativas voltadas ao universo dos recursos hídricos. “Implementados em maior escala, os sistemas (de baixo custo em comunidades isoladas) podem ajudar na busca da universalização do saneamento no Brasil”, ressalta Letícia de Lima, hoje doutoranda em Engenharia Hidráulica e Saneamento na Escola de Engenharia do câmpus de São Carlos da USP.

A universalização dos serviços sanitários é uma das metas da Lei nº 14.026/2020, que atualiza o Marco Legal do Saneamento. Até o final de 2033, nas contratações públicas de serviços destinados a este fim, pretende-se garantir o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgoto. “O saneamento básico é um direito previsto na Constituição e se relaciona com a dignidade humana. Todo cidadão tem direito a um meio ambiente equilibrado e à saúde”, ressalta a pesquisadora. 

Afastadas dos centros urbanos e desconectadas de redes e sistemas públicos convencionais de saneamento básico, as comunidades isoladas estão fora deste escopo por razões técnicas e/ou econômicas – na década passada, o IBGE indicava que cerca de 30 milhões de brasileiros viviam em áreas rurais e comunidades isoladas.

Além do risco de contaminação do solo e da água, a falta de tratamentos de água e esgoto costuma ameaçar populações de comunidades isoladas com surtos de diarreia. A maior parte das mortes causadas por doenças diarréicas, segundo dados da Organização Mundial da Saúde, está relacionada a saneamento inadequado.

Sistemas de fácil manutenção

O trabalho de campo no assentamento rural de Ilha Solteira aliou um diagnóstico da situação local à implementação de soluções de baixo custo já estudadas anteriormente, em trabalhos desenvolvidos pela Embrapa, por exemplo. No início do mestrado, a pesquisadora da Unesp aplicou um questionário para aferir a vulnerabilidade socioeconômica das 210 famílias assentadas e a forma como os moradores coletavam a água e destinavam o esgoto. Um formulário com questões sobre saúde, renda, abastecimento de água e esgotamento sanitário foi submetido a cerca de 20% dos habitantes da comunidade e 73,8% dos entrevistados relataram o aparecimento de ratos e baratas no domicílio, um indicativo das condições precárias presentes. 

As entrevistas ajudaram na escolha dos locais prioritários para montar a estrutura física dos sistemas de tratamento de água e de esgoto a serem testados no assentamento. Para o tratamento de água, por exemplo, a pesquisadora deu prioridade a lotes que não utilizavam poços rasos, mais suscetíveis a contaminação do que poços artesianos, mais profundos e protegidos. A implementação dos sistemas alternativos foi norteada, sobretudo, por escolhas de sistemas de tratamento de água e de esgoto que balanceavam eficiência e o menor custo possível para o morador. A intenção era implementar tecnologias que fossem fáceis de construir e fazer a manutenção, de maneira que as ações desenvolvidas durante a pesquisa pudessem ser absorvidas e o conhecimento gerado, replicado pelos moradores no futuro.

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Manutenção do sistema clorador, com hipoclorito de cálcio, feita por moradora

Após a aplicação do questionário, foram implementados e analisados dois sistemas de tratamento de água, o SODIS e o clorador, e dois sistemas de tratamento de esgoto, a fossa biodigestora e o SAC. Cada sistema foi instalado em um lote diferente do assentamento rural. Construído com uma garrafa PET e uma telha metálica, o SODIS foi o sistema considerado mais eficiente no tratamento de água, cuja desinfecção é feita com ajuda da radiação solar. A radiação infravermelha esquenta e faz a pasteurização da água, enquanto a radiação ultravioleta inativa os microrganismos, afetando seu DNA e fazendo a desinfecção. O sistema clorador é uma tecnologia feita com tubos de PVC e um filtro de carvão. Nele, a desinfecção da água do poço é feita com hipoclorito de cálcio, um desinfetante que inativa os microrganismos da água. Acoplado no sistema, um filtro de carvão ativado remove a matéria orgânica da água e evita a formação de produtos prejudiciais à saúde.

A fossa biodigestora é um tratamento do esgoto baseado em processos biológicos. A manutenção é realizada com esterco bovino, e o fato de que havia criação de gado no lote foi um dos critérios avaliados para sua seleção para o experimento implementação, diz Lima. Na entrada do sistema, uma vez ao mês, o morador adiciona uma mistura de esterco e água. O esterco contém microrganismos que ajudam no processo de decomposição da matéria orgânica do esgoto. O sistema resulta em um líquido livre de matéria orgânica e rico em nitrogênio e fósforo, um biofertilizante. O Sistema Alagado Construído (SAC), que apresentou melhor custo-benefício, é também chamado de jardim filtrante: uma vala escavada preenchida com meio filtrante – no caso, pedra portuguesa, brita e taboa, uma planta aquática. Ao entrar no sistema, o esgoto passa por uma caixa de decantação, que faz a retirada dos sólidos, e depois por uma caixa de gordura, evitando entupimento. A remoção da matéria orgânica do esgoto é feita pelos microrganismos aderidos nas raízes das plantas, que complementam esse tratamento removendo nutrientes como nitrogênio e fósforo, incorporando-os em sua biomassa, explica a pesquisadora.

Além de uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a pesquisadora contou com recursos da Fundação de ensino, pesquisa e extensão de Ilha Solteira (FEPISA) e ajuda da Prefeitura Municipal de Ilha Solteira. Por sua vez, o ProfÁgua, programa de pós-graduação em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos e iniciativa conjunta da ANA com a CAPES, financiou a implantação física da dissertação com recursos para compra de materiais para construção e manutenção dos sistemas.

“O ProfÁgua sempre esteve direcionado para o foco social e a melhoria da qualidade de vida das pessoas, resolvendo problemas relacionados à água, um programa diferenciado que visa prioritariamente a criação e implantação de produtos que resolvam problemas na gestão e regulação de recursos hídricos em todo o país”, ressaltou o Jefferson Nascimento de Oliveira, professor na Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira da Unesp. O docente ressaltou ainda a possível continuidade e ampliação do projeto, uma integração forte com a extensão e projetos futuros dentro do ProfÁgua e a interconexão com o programa acadêmico da Engenharia Civil.

Ao longo de 16 semanas, Letícia Beatriz de Lima coletou amostras de água e esgoto, cujas propriedades físico-químicas foram analisadas em laboratório para verificação da eficiência dos tratamentos. A pesquisa beneficiou quatro lotes do assentamento rural e mostrou que os sistemas poderiam ser replicáveis em outros locais, uma vez que são tecnologias de fácil confecção e baixo custo. 

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Construção do Sistema Alagado Construído, ou jardim filtrante: melhor custo-benefício para tratamento de esgoto no assentamento

Sensibilização social é necessária

Apesar da simplicidade dos sistemas descritos, a pesquisadora realizou em paralelo um trabalho de conscientização sobre a importância de boas práticas sanitárias. Foi produzido um material didático em forma de cartilha informativa chamada “Saneamento inclusivo – sistemas para tratamento de água e esgoto em comunidades isoladas”, a respeito de sistemas de tratamento compatíveis com a realidade local. Em sua dissertação, a engenheira lembra da relevância desses materiais, impressos ou online, para “sensibilização social” e criação de “pontes entre o conhecimento acadêmico e os cidadãos”. De livre acesso, a cartilha incentiva a adoção de soluções alternativas simples, seguras e sustentáveis a moradores que costumavam. coletar água e descartar o esgoto intuitivamente, sem orientação nem suporte técnico.

“A pesquisa levou aos moradores do assentamento rural educação, informação, conhecimento, além de condições básicas de saneamento e saúde aos moradores atendidos pelos sistemas de tratamento”, diz a professora Liliane Lazzari Albertin, orientadora da dissertação. “A ausência de orientação técnica leva à adoção de métodos inadequados ou ao uso incorreto dos sistemas de tratamento”, afirma.

“O impacto na comunidade será de médio a longo prazo, pois é necessário que existam órgãos  ou instituições que contribuam para a difusão dessas tecnologias. A Unesp, Embrapa, comitês de bacias (hidrográficas), prefeituras e outras instituições têm realizado esse trabalho de difusão, mas o saneamento rural ainda tem um longo caminho a ser percorrido”, reflete o professor da Unesp Maurício Augusto Leite, que também orientou o trabalho.

Entrevista da pesquisadora Letícia Beatriz de Lima à Rádio Unesp FM

Imagens: Letícia Beatriz de Lima/Arquivo pessoal

Fonte: Jornal da UNESP

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