A tecnologia está pronta, mas o mundo está pronto? A mudança considerável em direção ao reúso de água ocorrerá apenas quando as circunstâncias de condução atingirem seu ponto de inflexão, ou seja, quando uma série de pequenas mudanças ou incidentes se tornarem significativos o suficiente para causar uma mudança maior e mais importante.
Desde que San Francisco (Califórnia, EUA) começou a explorar as possibilidades da água de reúso em 1932, a promessa de conservar um dos recursos mais preciosos da Terra pairou sobre nós de forma tentadora. A ideia de garantir o abastecimento adequado de água reutilizando tudo ou a maior parte do que consumimos é interessante. Ninguém pode argumentar contra seus méritos. Os fatores que obrigam à sua consideração e adoção estão crescendo. No entanto, apesar de seu grande apelo, poucas empresas e domicílios estão adotando o conceito. Como passar da curiosidade para uma prática que é vista em todos os escritórios, fábricas, fazendas e casas? Como transformamos o reúso de água de uma curiosidade interessante para uma prática que é vista em todos os escritórios, fábricas, fazendas e casas? Como podemos permitir que o reúso de água se torne tão difundido quanto a reciclagem de resíduos? Há cinco fatores que podem acelerar a adoção do reúso de água.
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Amenizar a mudança climática e resiliência à seca
Nada tem sido um fator mais convincente para a adoção da água de reúso do que as secas. As mudanças climáticas estão tornando as secas mais frequentes, severas e estendendo o tempo necessário para as áreas afetadas se recuperarem1 . De estados como a Califórnia ao Texas, nos Estados Unidos, comunidades vulneráveis à água tiveram que adotar a conservação e o reúso de água. Na Califórnia, cidades como São Francisco e Los Angeles adotaram e utilizaram o reúso potável indireto (RPI). No Texas, o reúso potável direto (RPD) tem sido utilizado em cidades como Wichita Falls e Big Springs.
As cidades que precisam de água farão o que for necessário para obtê-la, mesmo que isso signifique considerar opções de ponta como o reúso potável direto (RPD). A sustentabilidade do reúso da água depende do que acontecer depois, quando a seca diminui e as fontes mais baratas de água voltarem a estar disponíveis.
A cidade de Wichita Falls (Texas) pode oferecer uma visão de como lidar com esses problemas. No auge de sua crise hídrica, as autoridades estabeleceram um sistema de reúso potável direto (RPD). Quando a seca diminuiu, eles migraram para um sistema de reúso potável indireto (RPI) . Essa abordagem permitirá potencialmente que a cidade mude para opções de RPI, menos caras quando os motivos para RPD não forem necessários. Seu exemplo demonstra que a água de reúso pode ser uma parte essencial de uma estratégia abrangente para enfrentar as mudanças climáticas e aumentar a resiliência climática. Em condições de seca, o reúso de água permite que as cidades utilizem o esgoto tratado para reúso potável direto ou indireto. Nas cidades costeiras, onde as mudanças climáticas estão levando ao aumento dos níveis de água do mar e inundações mais frequentes, aumentando o risco de inundação de fontes de água com infiltração de água salgada, o reúso de água reduzirá a exposição dessas cidades aos efeitos imprevisíveis de incidentes relacionados às mudanças climáticas, que comprometem o abastecimento de água para consumo.
Corporações e o esforço para mitigar o risco ambiental
Nas últimas duas décadas, as corporações adicionaram um novo risco à crescente lista de incertezas contra as quais devem se proteger: imagem de marcas relacionadas à água e riscos financeiros. Ao contrário dos riscos gerais de conformidade que decorrem da capacidade da corporação de atender às regulamentações ambientais existentes, o risco ambiental relacionado à água é baseado em considerações de sustentabilidade e cidadania corporativa responsável. Está relacionado ao quão bem uma corporação está sendo uma administradora responsável dos recursos hídricos em seu ambiente operacional.
A introdução do conceito de pegada hídrica em 2002 por Arjen Hoekstra, forneceu uma métrica quantificável de como as organizações impactam a sustentabilidade hídrica em suas regiões de operação. Isso significou que, pela primeira vez, uma métrica estava disponível para medir a quantidade de água consumida e contaminada para produzir bens e serviços. Dessa forma permitindo que comparações significativas do uso de água sejam feitas entre produtos, bem como dentro e entre organizações. O resultado foi que as empresas começaram a sentir grande pressão para definir e estabelecer metas para gerenciar sua pegada hídrica2.
Hoje em dia, não há praticamente um relatório anual de grandes corporações que não inclua métricas e metas de pegada hídrica. Um artigo de 2004 analisou3 o impacto do desempenho ambiental no mercado de ações e constatou que o anúncio de penalidades ambientais causou uma resposta do mercado de ações.
Embora seja cínico dizer que todas as ações ambientalmente responsáveis das corporações foram conduzidas pela gestão de risco e não por um interesse genuíno na sustentabilidade, a realidade é que o interesse corporativo em manter a integridade da marca e não comprometer o valor dos acionistas, desempenha cada vez mais um papel em atividades ambientalmente impactantes, como a redução da pegada hídrica.
Mas o interesse próprio corporativo e a sustentabilidade ambiental não precisam ser mutuamente exclusivos. Por exemplo, há uma aceitação crescente no fato de que o mercado de ações pode ser uma ferramenta poderosa para aumentar a sustentabilidade 4 .
No entanto, mover a agulha sobre o reúso de água industrial deve depender mais do que apenas a mitigação do risco de marca e avaliação. A maior parte da atividade econômica no mundo não é impulsionada por empresas listadas em bolsas de valores, cujas fortunas de negócios e marcas possam ser impactadas pelo comportamento dos acionistas ou influenciadas pelas atividades de investidores institucionais conscientes da sustentabilidade, como fundos mútuos. São as pequenas e médias empresas não listadas, de capital fechado, que geram mais de 60% de todos os empregos. Até que o reúso e a reciclagem da água se tornem uma opção razoável e sensata para essas empresas, nenhum impacto substancial será causado. Suas decisões serão em grande parte impulsionadas pelo valor econômico do reúso da água.
Elas exigirão soluções compactas e econômicas que possam permitir que reutilizem parte substancial de sua água e se beneficiem amplamente do fornecimento de sistemas plug-and-play ou contratos de serviços operacionais que permitam aos provedores especializados gerenciar as plataformas de reuso de água no local. Se o custo do serviço oferecer economia em relação ao status quo, essas empresas adotarão prontamente soluções da água de reúso.
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Preços diferenciados do tratamento de esgoto versus tratamento de água e o impacto de regulamentos mais rigorosos
Em meados dos anos 2000, estive envolvido em vários projetos comerciais de reúso de água no Brasil. Esses projetos empolgantes e inovadores não aconteciam em Nova York, Londres, Espanha ou Toronto, mas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. A organização com a qual eu trabalhava na época, uma empresa global de gás industrial, possuía uma empresa de operações de contrato de água e esgoto que gerenciava as operações e às vezes se envolvia em projetos autofinanciados (self-funded design) de construção e operação (DBO) de reúso de água.
A empresa de operações possuía um portfólio diversificado de clientes industriais e residenciais, a maioria dos quais reciclavam seus efluentes tratados. Os clientes incluíam arranha-céus residenciais, um grande estúdio de televisão, vários shopping centers, uma instituição de ensino superior e uma empresa automobilística. Por que o reúso de água prosperava no Brasil enquanto ainda havia debates sobre sua adoção em economias mais desenvolvidas? O motivo era simples, os custos de descarga de esgoto eram de duas a três vezes maiores do que os custos de tratamento de água. Na época, o Brasil tinha uma infraestrutura de tratamento de esgoto insuficiente e a maior cobrança pelo descarte de esgoto impulsionava o reúso da água.
O reuso de água era uma coisa economicamente sensata a se fazer. Os efluentes tratados foram usados para descarga de vasos sanitários, regar gramados e fazer lavagens de fábricas. As condições eram adequadas para alavancar tecnologias inovadoras como filtração por membrana, aeração baseada em oxigênio puro e oxidação avançada com ozônio para garantir a segurança da água de reúso e, ao mesmo tempo, manter os custos de tratamento baixos.O primeiro biorreator de membrana em escala comercial (MBR) e projetos de oxidação avançada com os quais estive envolvido foram implantados para aplicações de reúso de água durante esse período no Brasil.
Há uma tendência emergindo nos EUA, Europa e até na China que pode levar à disparidade nos custos de tratamento de água e esgoto na medida em que o reúso da água começa a se tornar economicamente mais viável. Trata-se do surgimento de regulamentações de tratamento de esgoto mais rigorosas, especialmente no que diz respeito ao controle de nutrientes como nitrogênio e fósforo. Como as comunidades do Médio Atlântico e Nordeste dos EUA estão começando a descobrir, atender aos limites de baixo teor de nutrientes requer o uso de tecnologias avançadas como MBRs, sistemas de filtração terciária, biorreatores de leito móvel, reatores com lodo granular e bactérias especializadas (por exemplo, anammox). Isso acrescenta custos, muito deles no tratamento de esgoto. O uso dessas tecnologias também implica que a qualidade da água tratada seja maior e que a “lacuna de qualidade da água”(“water quality gap”) para tornar a água de padrão reutilizável, seja muito menor.Quando as regulamentações começarem a abordar compostos emergentes que estão presentes em pequenas quantidades nos efluentes tratados, os custos de tratamento inevitavelmente aumentarão e o reúso de água provavelmente emergirá naturalmente como uma opção viável para o gerenciamento holístico da água.
Redução de custo na gestão da água em nível doméstico
Embora a água conduzida para as residências seja chamada de água potável, menos de 1% dela é bebida ou colocada em uma panela para cozinhar. Os 99% restantes dessa água potável são usados em atividades como lavar roupas e pratos, regar gramados, banhos e descargas nos banheiros.
Existem oportunidades significativas de reúso em grande parte da água utilizada nas residências. No entanto, o custo de tratar a água e reutilizá-la pode ser proibitivo. O desafio dos sistemas de tratamento comercial e doméstico de pequena dimensão é a escala. O uso de água no nível doméstico é de cerca de 50 galões (190 litros) per capita para uma família de quatro pessoas. Um sistema doméstico de reúso, deve ser capaz de recuperar a água em chuveiros, torneiras, roupas, lava-louças e tratar a água para que ela possa ser usada como descarga em vasos sanitários, lavagem de carros ou irrigação de gramados. Por razões econômicas, os sistemas de tratamento microbiano ofereceriam as opções mais viáveis. No mínimo, os sistemas de tratamento doméstico biologicamente mediados teriam que ser dimensionados a um volume que fosse de uma a cinco vezes a capacidade total de uso diário de água para garantir que haja tempo de espera suficiente para o tratamento.
Devem ser capazes de remover sólidos, separar gorduras e óleos da água e eliminar bactérias patogênicas. Como as descargas com matéria fecal provavelmente serão excluídas dos fluxos de reúso, os resíduos serão diluídos e não muito passíveis de tratamento anaeróbio, portanto, métodos aeróbicos serão necessários. Sem o entendimento necessário para garantir que a eficiência da transferência de oxigênio esteja no nível de 15 a 20% encontrado nas estações de tratamento municipais, elas devem incorporar novas tecnologias de transferência de gás. Atingir todos esses objetivos pode exigir sistemas de filtração que estejam na faixa de micro ou ultrafiltração, pequenos o suficiente para garantir que os micróbios não se espalhem, fornecendo tratamento em grau de desinfecção sem o uso de produtos químicos. As tecnologias existem, e agora são necessários pesquisadores inovadores que encontrem novas maneiras de integrá-las para implantação viável no nível doméstico, bem como desenvolvedores que reimaginem a tubulação de água doméstica, abastecimento de água potável e opções de reúso.
Gerenciamento da redução de receita nos serviços públicos devido ao reúso de água
À medida que acontecer maior reúso de água, menos água será demandada ou tratada pelas concessionárias. Em essência, o volume de água que as concessionárias podem cobrar para cobrir seus custos seria reduzido. A maioria das concessionárias não são entidades com fins lucrativos, portanto, suas tarifas refletem os custos mínimos necessários para manter a infraestrutura no tratamento de água e esgoto. Independentemente da quantidade de água que flui pelas tubulações, as estações de bombeamento ainda têm que funcionar e as linhas de esgoto também devem ser mantidas. As ETEs precisam ter capacidade suficiente para tratar o esgoto que provavelmente será severamente reduzido em termos de fluxo total, mas ainda terá quase tanto conteúdo orgânico quanto o contido nos fluxos mais altos antes da adoção em larga escala do reúso de água. Os custos de tratamento de um município não serão reduzidos proporcionalmente ao fluxo.O resultado mais provável é que as concessionárias precisarão aumentar os custos de tratamento de água e esgoto à medida que o reúso de água se tornar mais comum. Na verdade, é possível que muitos aspectos do gerenciamento de ativos das concessionárias se tornem ainda mais caros à medida que o reúso de água ganhe ritmo. Por exemplo, menos água fluindo pelos sistemas de esgoto implicaria em aumento do tempo de retenção de esgoto mais concentrado nas linhas. Como resultado as linhas de esgoto terão mais condições sépticas, os odores, emissões de metano e os problemas de corrosão serão maiores. A menos e até que aceitemos a realidade de que o ambiente operacional das concessionárias mudará junto com a integração do reúso de água, poderemos nos encontrar numa situação em que as concessionárias de água e esgoto acabarão se tornando um dos principais entraves para a adoção em larga escala da água de reúso.
Referências:
1https://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-4792908/Study-findsdroughts-frequent-severe.html
2 https://en.wikipedia.org/wiki/Water_footprint.
3 Lorraine et al (2004. An analysis of the stock market impact of environmental performance information. Accounting Forum.https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0155998204000031
4 Siobhan Cleary.http://unepinquiry.org/wp-content/uploads/2015/12/Stock_Exchanges_and_Sustainability.pdf
Autor: Malcolm Fabiyi (5 fatores que impulsionarão a adoção generalizada da água de reúso)
Fonte: Water Online
Adaptado por Digital Water